A rigor, foi nesse dia de inverno, na soturna companhia de um dos mais violentos tiranos do século 20, que nasceu o Estado do Vaticano como ele é hoje: o menor país independente do mundo e a última monarquia absolutista da Europa. Mas o encontro em Latrão foi resultado de uma história muito mais longa, que se enraiza 2000 anos no passado - desde um tempo em que o papa era apenas o bispo de Roma, uma entre muitas lideranças de uma seita perseguida. Em seu auge, pontifices se declaravam os "senhores do mundo" e desencadeavam guerras com um sinal-da-cruz. Hoje, o papado é a mais longeva organização internacional da história. De onde veio, e onde foi parar tanto poder? Para desvendar essa história é preciso retornar às origens do cristianismo, quando Roma virou centro de uma seita judaica nascida nas areias do Oriente Médio.A primeira Igreja
No início, o cristianismo era uma seita de judeus para judeus. Tanto é verdade que, após a crucificação de Cristo, os apóstolos se mantiveram pregando em Jerusalém. A idéia de que Jesus era o tão aguardado Messias, porém, não pegou entre os judeus. Pelo contrário: os apóstolos foram tão hostilizados que se viram obrigados a se espalhar pelo Oriente Médio e pregar para novos ouvidos. Foi assim que o Messias passou a ser descrito como redentor de todos os homens e de todas as raças. Comunidades chamadas igrejas - do latim ecclesia, assembléia - pipocaram em cidades da Ásia, África e Europa. E logo chegaram ao centro político de então - a tradição católica assegura que Pedro viajou a Roma por volta do ano 42. A vida na capital não era fácil: os cristãos eram persegidos por se recusar a adorar deuses romanos. O próprio Pedro foi preso e levado ao Circo de Nero, uma arena usada para para corridas de carruagens e execuções de traidores construída nem terreno pantanoso nos subúrbios de Roma. A região era conhecida como Vaticanus, provável derivação de Vaticus, antiga aldeia etrusca que existia lá. Nesse lugar misterioso e algo sinistro, Pedro foi crucificado e enterrado. Mas, precavido que era, ele já havia escolhido um sucessor, Lino, romano convertido ao cristianismo sobre o qual quase nada se sabe além do nome. E assim a autoridade de Pedro foi transmitida, como continuaria sendo de geração em geração e de bispo em bispo, até chegar a Bento 16, 267o. herdeiro de são Pedro - ou 265o., como prefere a Igreja, que riscou de sua lista Estevão, que morreu apenas 3 dias após ser eleito, e Cristovão, que tomou o poder à força.
Está ai, em resumo, a tese do "primado de Roma", segundo a qual os bispos romanos são os representantes legítimos de Jesus. Mas os fatos que sustentam esse dogma nunca foram unaminidade. Não há provas da passagem de Pedro por Roma. A Bíblia nada diz a respeito - lendas sobre sua viagem e martírio foram coletadas por volta de 312 a. C. , na obra de um propagandista da Igreja, Eusébio de Cesaréia. Comprovar essa tradição sempre foi questão de honra para os papas. Na década de 1930, por exemplo, escavações financiadas pelo Vaticano encontraram um antigo túmulo sob o altar da Basílica de São Pedro - que, de acordo com a tradição, foi erguida sobre a sepultura do apóstolo. Junto aos ossos, os arqueólogos acharam símbolos cristãos, como peixes e cruzes. A decoberta não convenceu todos os especialistas. "Havia cemitérios no Vaticano muito antes de Cristo. O túmulo na basílica talvez nem seja cristão - os romanos pagãos costumavam usar símbolos de todas as religiões", diz o historiador André Chevitarese, da UFRJ, um dos maiores especialistas brasileiros no assunto.
Como a maioria de seus companheiros, Chevitarese também duvida que Pedro fosse um lider absoluto. "O cristianismo antigo não tinha hierarquia rígida. Havia bispos independentes, com opiniões diversas sobre a doutrina e fé." Essa fase "democrática" chegou ao fim em 312, quando o imperador Constantino se "converteu" - e a religião perseguida passou a ser a favorita do Estado. Foi a partir daí que a Igreja se tornou hierárquica. Doações feitas pelos imperadores a enriqueceram - a instituição do celibato foi feita nessa época, para impedir que a fortuna evaporasse entre herdeiros. A proximidade do poder logo subiu à cabeça do bispo romano - que, até então, não era mais nem menos respeitado que líderes de outras comunidades. No final do século 4, os bispos de Roma adotaram o título de papa, "pai", em grego, sinal de que se consideravam chefes dos outros. Uma espécie de réplica espiritual do imperador. - Certo dia, Jesus passeava pela Judéia, uma das províncias do Império Romano. De repente, o Messias olhou para um de seus apóstolos, o pescador Simão, tembém conhecido como Pedro. E disse: "Tu és Pedro e sobre essa Pedra edificarei minha Igreja. Eu te darei as chaves do reino do céu, e o que ligares na Terra será ligado nos céus". Para o dogma católico, essa passagem do Evangelho de São Mateus significa que Pedro foi escolhido como representante de Cristo na Terra. O primeiro papa.Trapaça na idade Média
Para entender o sentido do documento, temos de voltar no tempo. Ao longo do século 5, a parte ocidental do Império Romano foi invadida e devassada por tribos bárbaras. Em 476, Roma foi conquistada. Na confusão da guerra, o papado foi a única instituição organizada que sobreviveu - o papa Leão Magno entrou para o rol dos gênios da diplomacia por ter liderado o Vaticano nessa transição. Quando o reboliço acabou, a igreja era dona do mais poderoso dos monopólios: o conhecimento. Religiosos cristãos eram os únicos europeus letrados no início Idade Média. Fornecendo conselheiros e legisladores para os reinos nascentes, a igreja ganhou influência sobre os soberanos bárbaros, que começaram a se converter em 508 - o primeiro foi Clóvis, rei dos francos, que mandou batizar seus exércitos com tonéis de água benta.
O autor da Doação de Constantino provavelmente pertencia a uma classe especial de cléricos eruditos: as equipes de falsários que, entre os séculos 6 e 9, trabalhavam nos escritórios papais alterando e inventando documentos para fortalecer a posição dos bispos romanos. a Doação era uma mistura de testemunho e testamento, supostamente assinado pelo Imperador Constantino em 315. O texto conta como o imperador foi milagrosamente curado da lepra graças às preces do papa Silvestre. Em troca, transformou os papas em seus herdeiros legais: "A eles deixo a coroa imperial e o governo de todas as regiões do Ocidente, de agora para sempre".
Ao longo da Idade Média, a Doação foi aceita como documento verídico e invocada por nada menos que 10 papas para reinvidicar poderes políticos. Muitos historiadores acreditam que a fraude foi usada pela primeira vez em 754. Nesse ano, Estevão 2o. viajou para encontrar Pepino, rei dos francos. Estevão procurava ajuda para transformar Roma e as terras vizinhas em território da Igreja - nos dois séculos anteriores. a capital da cristandade havia sido saqueada e dominada por hérulos, godos, bizantinos e lombardos. Pepino, que havia tomado o trono à força, tentava legitimar seu poder. "A solução foi apresentada pessoalmente por Estevão a Pepino. O rei franco aceitou o documento como prova da autoridade dos papas - na sociedade iletrada da época, registros escritos despertavam respeito", escreve o historiador americano Norman Canton em The Civilization of the Middel Ages (A Civilização da Idade Média)", sem tradução em português). Pode parecer estranho, mas os invasores tinham uma admiração supersticiosa por seu inimigo, o antigo Império Romano. Os reis bárbaros sonhavam em igualar os antigos imperadores - e Constantino era um dos mais famosos. Depois de ter a coroa consagrada por Estevão, Pepino partiu para a a Itália. Expulsou os lombardos, que dominavam o país na época, e converteu um pedaço da Itália central em território independente, da Igreja. O coração do novo reino era a cidade de Roma e a área vizinha, que hoje forma o Vaticano. Todos os habitantes dessas regiões viraram súditos dos papas, passaram a lhes pagar impostos, ser julgados e governados por eles. Assim nasceu o Estado Pontifício, que durou até 1870. - Na penumbra da sala, um homem escreve sua obra-prima. Ele usa uma pena, tinta preta e folhas de papiro ou pergaminho. Não há certeza quanto à data, algo em trono do ano 750. Um endereço provável é Palácio de Latrão.O autor seria um certo Cristóforus, secretário do papa Estevão 2o. Certeza mesmo, só em relacão à obra: é a Doacão de Constantino, a fraude mais bem-sucedida da história.Donos do mundo
O adversário seguinte dos papas surgiria na forma de um ex-aliado. Na época, a segurança do Estado Pontíficio era mantida por tropas do Sacro Império Romano - fundado por Carlos Mágno, filho de Pepino. Em troca da proteção, os imperadores execiam uma pesada influência sobre a Igreja. Na prática, o lider da cristandade era um pau-mandado. Em 1073, surgiu um papa disposto a virar o jogo. Baixinho e de voz aguda, Gregório 7o. tinha um temperamento tinhoso, que lhe rendeu o apelido de Santo satanás. Em um decreto famoso, determinou que os pontífices não só tinham o direito de legitimar soberanos como também podiam depô-los. E decalrou que o papa não era só o lider da igreja mas o "senhor do mundo". Isso enfureceu Henrique 4o., soberano do Sacro Império Romano. Sem pestanejar, Gregório o excomungou. "A excomunhão era uma ferramenta poderosa. O excomungado ficava proibido de ir à missa e receber sacramentos - num tempo em que a religião estava entranhada na vida cotidiana, essa punição era terrivalmente pesada", diz a historiadora Andreia Frazão, especialista em Igreja medieval. No inverno de 1077, Henrique foi pedir perdão às portas do castelo de Canossa, na Itália, onde o papa se hospedava. O Santo Satanás o obrigou a esperar 3 dias na rua, debaixo de neve, antes de absorvê-lo.
Com o implacável Gregório, o papado passou da defensiva para o ataque. Se antes precisava de proteção, agora se impunha com ameaças de escomunhão. Hoje, os papas se declaram apenas pastores espirituais. Naquela época, eram soberanos políticos com sonhos de hegemonia, dispostos a conquistar o mundo pela cruz e pela espada. A maior prova de poder e ambição veio em 1095, quando Urbano 2o. ordenou que os reis cristãos marchassem contra o Oriente Médio para "libertar" Jerusalém, governada por mulçumanos desde o século 7. Cerca de 25.000 peregrinos e guerreiros cristãos começaram a escrever uma das páginas mais brutais da história: as Cruzadas. Durante a tomada de Jerusalém, em 1099, quase todos os judeus e muçulmanos da cidade foram massacrados. Nos 200 anos seguintes, mais 8 cruzadas marchariam sobre a Terra Santa.
Um século depois de Gregório, em 1198, subiu ao trono Inocêncio 3o. - o papa mais poderoso da história. Agora o papado era uma potência militar, capaz de contratar exércitos, e também uma instituição milionária. Camponeses e artesãos europeus eram obrigados a rechear os cofres da Igraja, com um décimo de suas rendas anuais, o "dizimo eclesiástico". A opulência papal era tanta que começou a atrair ódio. Na época de Inocêncio, ganhou força no sul da França uma seita conhecida como catarismo que negava a autoridade do papa e o chamava de filho do demônio. Inocêncio respondeu com fúria ao desafio. Em 1209, convocou uma guerra santa contra a "seita maldita": aldeias foram queimadas, multidões chacinadas. Para aniquilar o que sobrou do catarismo, Gregório 9o., sucessor de Inocêncio, criou em 1233 a Santa Inquisição, tribunal de cléricos com o poder de acusar, julgar e condenar inimigos da Igreja. Com o tempo, o Santo Ofício se espalhou por outros paises e passou a perseguir e queimar não só cátaros, nas todos que discordassem dos dogmas católicos - judeus, cientistas, crentes, gays. As sociedades cristãs se tornaram perseguidoras e teocráticas. Por outro lado, a estabilidade alcançada na marra alavancou o desenvolvimento que transformou a Europa na maior potência mundial. Cronistas descrevem o mais terrivel e bem-sucedido dos papas como um sujeito afável que gostava de contar piadas. Mas também fiel a sua passagem favorita da Bíblia, em que Deus diz a Jeremias: "Eu vos alcei por cima das nações e dos reinos para vencer e dominar, para destruir e conquistar". - Na virada do ano 1000, a Europa estava de joelhos. Pela espadas dos reis católicos e pelas viagens de missionários, o cristianinsmo tinha unificado o caleidoscópio cultural do Ocidente numa grande nação espiritual. Na Ásia, porém, a autoridade do papa não era reconhecida. O patriarca de Constantinopla, atual Istambul, considerava-se tão importante quanto seu colega italiano. E ainda havia discordâncias em certos aspectos da liturgia romana, como o celibato e a missa em latim. A rixa explodiu em 1054, quando o papa Leão 9o. e o patriarca Cerulário se excomungaram um ao outro e romperam relações. Os orientais formaram a Igreja Ortodoxa, enquanto a Igreja Romana se declarou a única, eterna e católica - do grego katholikos, "universal".Decadência com elegância
A influência mundial esmorecia, mas os papas ainda eram príncipes ricos e poderosos em seu território. E, aos poucos, a boa vida afrouxou os costumes da Igreja. O celibato passou a ser um detalhe esquecivel e Roma mergulhou numa luxuosa dolce vita. A carreira eclesiástica virou imã para oportunistas interessados na fortuna da Igreja. Exemplo máximo foi Rodrigo Bórgia (ou Alexandre 6o.), eleito papa em 1492 graças à pesada propina distribuida aos eleitores - pesada mesmo: eram 4 mulas carregadas de ouro. Bonitão e sedutor, Alexandre tinha duas amantes oficiais, deu festas de arromba no Palácio Apostólico e gerou 7 filhos conhecidos, alguns presenteados com rentáveis cargos eclesiásticos.
Apesar da má fama, os papas da Renascença souberam usar sua riqueza para deixar um legado cultural exuberante. Construiram bibliotecas, ergueram monumentos e transformaram a cidade em um tesouro para os olhos. O maioral entre os papas da arte foi Júlio 2o., que subiu ao poder em 1503. Pai de 3 filhas, em vez de rezar missas de batina ele preferia comandar exércitos, vestido de armadura de prata. Nos intervalos entre batalhas, o papa guerreiro patrocinou alguns dos maiores gênios da época, como os pintores Michelangelo e Rafael. Com a proteção e os salários pagos pelo Vaticano, eles realizaram obras-primas como as incríveis pinturas no teto da capela Sistina, de Michelangelo.
Foi justamente a admirável extravagância de Júlio que detonou a pior crise na história da Igreja. Em 1505, o papa começou a reconstrução da Basílica de São Pedro, no Vaticano, que estava em ruínas. Para financiar as obras, autorizou todas as igrejas da Europa a vender "indulgências" - documento que davam absorvição total dos pecados em troca de dinheiro. Isso enfureceu o monge alemão Martinho Lutero, que em 1517 publicou 95 teses denunciando a corrupção da Igreja. Começava a Reforma Protestante. Pouco depois, cristãos da Alemanha, da Holanda e da Europa Central, já renegavam a autoridade do papa e a supremacia de Roma. O continente mergulhou em dois séculos de guerras religiosas. - Entre os séculos 12 e 15, o sonho da hegemonia implodiu. As Cruzadas acabaram em fiásco: em 1292, os europeus foram definitivamente expulsos pelos sultões islãmicos. Dentro da Europa, os delírios absolutistas do Vaticano revoltaram até o clero. Foi Lorenzo Vália, um sacerdote, que desmascarou a Doação de Constantino, em 1440. Vália provou que o documento estava cheio de erros históricos - de acordo com os biógrafos antigos, Constantino nunca sofreu de lepra. O prestígio espiritual da Santa Sé foi estremecido - as escomungações perderam a eficiência e os reis começaram a peitar os papas. Enquanto isso, a educação deixava de ser privilégio do clero, universidades pipocavam pela Europa, a ciência e a arte vicejavam: era o Renascimento.Medo da modernidade
Em 1870, um movimento nacionalista unificou a colcha de retalhos que era a Itália e transformou as terras papais em propriedade do novo Estado. No inicio do século 20, o sucessor de Pedro estava pobre e reduzido a uma nulidade política. Os palácios do Vaticano caiam aos pedaços, com esgotos entupidos e ratos. Foi nesse aperto que Pio 11 assinou o controverso Tratado de Latrão, que incluia não apenas um território soberano mas também uma doação de cerca de US$90 milhões - o suficiente para tirar as contas do vermelho. Foi uma bela virada. Hoje, o Vaticano divulga lucros anuais de US$200 milhões, incluindo doações de dioceses e investimentos em empresas européias.
O pacto de Mussolini foi terrível para a imagem do Vaticano. No fim da vida, Pio 11 repensou suas alianças e escreveu uma encíclica condenando o anti-semitismo - na época, Hitler já tinha dado a largada para o Holocausto. Diz a história que faltavam dois dias para a publicação do texto quando ele morreu, em 1939. Numa decisão desastrosa, o sucessor, Pio 12, arquivou a encíclica redentora: ele via no regime nazista um incômodo necessário na luta contra a maior das ameaças, o comunismo. "Mesmo após o início da segunda Guerra Mundial, Pio 12, um papa eloquente, que fazia milhares de discursos sobre todos os assuntos possíveis, jamais denunciou os crimes nazistas. Adolf Hitler, que se dizia católico, nunca foi excomungado", escreve o teólogo alemão Hans Kung em Igreja Católica. Em 1958, a morte de Pio 12 deu inicio a um dos conclaves mais agitador do século 20. Para impedir a eleição de um conservador, cardeais progressistas votaram em peso em Angelo Roncalli (ou João 23), que quase com oitenta anos parecia inofensivo. Nem bem subiu ao poder, o velhinho bonachão surpreendeu até os liberais ao convocar o Concílio Ecumênico Vaticano 2o. - o objetivo, nas palavras do próprio João, era "atualizar" a Igreja. Concílios - ou seja, assembléias universais de bispos - ocorriam desde o início do cristianismo e eram um resquício de sua democracia primordial. Mas, desde a Idade Média, as decisões eram controladas ou censuradas pelo tacape do papa de plantão e seus funcionários mais próximos. A proposta de João 23 era afrouxar a hierarquia e dar mais poder de decisão aso bispos reunidos.
O concílio trouxe mudanças antes impensáveis. Entre outra coisas, reconhecer o direito de cada indivíduo escolher a própria religião - o que abriu canais de diálogo com outras crenças. A liturgia foi reformada e as missas passaram a ser rezadas nas linguas locais, e não em latim. Mas João morreu de câncer em 1963, deixando o concílio pela metade. Seu sucessor, Paulo 6o., permitiu-se dominar pela ala conservadora e barrou a mais importante de todas as propostas: uma revisão do "primado de Roma", a tese que sustenta a autoridade suprema dos papas. "Houve tristeza e indignação entre os bispos reunidos. Mas ninguém protestou em público", escreve Kung, um dos teólogos progressistas que participaram do concílio - e também um indignado tardio, que só tornou pública sua revolta a partir de 1970, quando passou a publicar livros criticando a doutrina absolutista do Vaticano.
A luta pela alma da Igreja Católica continua. João Paulo 2o., que sempre foi um carismático conservador, não mexeu em doutrinas controversas, como a condenação dos anticoncepcionais. As perspectivas para uma futura reforma do papado são nebulosas. Por volta de 2001, Hans Kung e outros teólogos liberais fizeram lobby por um Concílio Vaticano 3o. - mas a idéia foi barrada pela Congregação para a Doutrina da Fé, novo nome para um velho órgão: a Inquisição. Hoje, claro, ela não queima ninguém, mas ainda tem o poder de travar mudanças nos dogmas e censurar teólogos moderninhos, como fez com o brasileiro Leonardo Boff, proibido de falar em público após criticar a postura centralizadora da Igreja. Na época em que o novo concílio foi recusado, o cabeça do santo Ofício era um certo cardeal alemão, conhecido como intelectual brilhante. Amigo de Kung nos anos 60, ele simpatizava com a ala progressista. Mas mudou de idéia. Afastou-se do antigo companheiro e tornou-se porta-estandarte da facção conservadora. Hoje, anda ao lado de cardeais como Giacomo Biffi, que durante o sermão da Quaresma do ano passado na Santa Sé afirmou que a vinda do anticristo se aproxima - e que o enviado do Diabo estará disfarçado de "ecologista, pacifista ou ecumenista". O nome desse cardeal alemão, você ja deve ter adivinhado. É Joseph Ratzinger.
A santidade dos papas é tão certa quanto ao fato de eles não precisarem comer, beber, fazer cocô, xixi, ter chulé, etc. Talvez até tenham o privilégio de poderem ser pedófilos. - Mas a Igreja tinha dias piores "pela frente". No século 18, a Europa viu o florescimento do Iluminismo, movimento filosófico que colocava a razão e a ciência no centro do mundo e questionava o valor absoluto da fé e das tradições. Pensadores iluministas, como o francês Voltaire, defendiam que todos os homens nascem iguais e têm o direito de escolher a própria religião. Esse novo jeito de pensar passou dos intelectuais para as massas: em 1789, a Revolução Francesa guilhotinou privilégios (e padres) e desapropriou terras da monarquia e da Igreja. Firmava-se o divórcio litigioso entre religião e Estado do Ocidente. De patrono das artes, o papado virou inimigo do progresso, entrando numa fase de pânico apocaliptico em relação a tudo o que cheirasse a modernidade - condenava até ferrovias e iluminação a gás. No século 19, a moralidade rígida era de novo a norma do Vaticano. O papa, que antes acumulava funções de político e soldado, passou a ser visto pelos fiéis como um santo vivo, casto e distante.