terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

Transplante de Órgãos: Canibalismo?



Nem sempre a Sociedade Torre de Vigia foi sistematicamente contrária ao avanço científico. Conforme vimos, no embalo deste avanço, os editores de A Idade de Ouro, em várias ocasiões, deram 'asas à imaginação', extrapolando em muito o que algumas suposições científicas pareciam sugerir. Todavia,  neste mesmo aspecto encontramos uma enorme incoerência - após haver elogiado certas conquistas dos cientistas, a literatura da organização, subitamente, dava uma 'guinada' completa, passando a atacar a mesmíssima coisa que havia anteriormente louvado. Vamos a um episódio célebre: o dos transplantes de órgãos.
         Nenhuma pessoa razoável negaria que a tecnologia dos transplantes de órgãos prestou um incomparável benefício à humanidade. De fato, pacientes condenados à morte pela falência de um órgão vital, com o advento dos transplantes, passaram a ver 'uma luz no fim do túnel'. Um dos casos mais notórios que atestaram a eficácia dos transplantes foi o do francês Emmanuel Vitria, o qual teve sua vida prolongada em cerca de 25 anos, graças a um coração transplantado. A técnica tem continuamente se aprimorado, com os transplantes estendendo-se a outros órgãos, tais como rins, fígado, pulmões, córneas e medula óssea. Milhões de pacientes pelo mundo aguardam ansiosamente na fila por um órgão novo, o qual lhes permita continuar vivendo. Além disso, novas drogas têm possibilitado enfrentar, com cada vez mais sucesso, o mais temido inimigo dos pacientes transplantados - a rejeição do tecido. Sem dúvida, tudo isso tem provido um enorme alento àqueles que estavam prestes a perder um ente querido em tal situação. Você próprio, leitor, talvez tenha sido beneficiado ou conheça alguém que já foi agraciado com os benefícios desta especialidade médica. Não se sente grato?
        No ano de 1949, os editores da revista Consolação (atualmente Despertai!) pareciam demonstrar bom senso, dando o devido crédito àquilo que chamavam de 'maravilhas da cirurgia', a saber, os transplantes de órgãos. A edição de 22 de Dezembro,  em uma matéria intitulada "Poupe partes de seu corpo", dizia:
"...Transplantes de  órgãos [são] maravilhas da cirurgia moderna."
        De modo semelhante, uma matéria publicada cerca de 13 anos depois, em  A Sentinela de 1 de Fevereiro de 1962, pág.  96, concluía:
   "Há alguma coisa na Bíblia contra se doar os olhos (após a morte) para serem transplantados numa pessoa viva? A questão de se colocar o corpo ou parte do corpo à disposição dos homens da ciência ou dos médicos, após a morte, para experiências científicas ou para transplantação em outros, não é vista com bons olhos por certos grupos religiosos. Entretanto, não parece haver nenhum princípio ou lei bíblica envolvida. É, portanto, algo que cada pessoa deve decidir por si mesma."

        Tudo parecia ir bem, até que, cerca de cinco anos mais tarde, a Sociedade Torre de Vigia pareceu unir-se a 'certos grupos religiosos', publicando um estranho comentário:
        "Será que há alguma objeção bíblica a que se doe o corpo para uso na pesquisa médica ou que se aceitem órgãos para transplante de tal fonte?... Aqueles que se submetem a tais operações vivem às custas da carne de outro humano. Isso é canibalesco...Jeová não deu permissão para os humanos tentarem perpetuar suas vidas por receberem canibalescamente em seus corpos a carne humana, quer mastigada quer na forma de órgãos inteiros ou partes do corpo, retirados de outros."
                                                                                  - A Sentinela de 1/6/1968, pág. 349,350
           Aqui, os editores da revista retrocederam aos velhos tempos em que Clayton Woodworth  estava à frente de A Idade de Ouro, colocando-se entre a ciência e seu público, como um inexpugnável obstáculo 'teológico' ao usufruto dos benefícios medicinais da era moderna. E não foi o caso de uma opinião isolada. Vejamos o que diz a revista 'companheira' - Despertai! - na sua edição de 8 de dezembro do mesmo ano, às  págs.  21 e 22:
         "Embora milhares de transplantes de córnea sejam realizados cada ano...Há aqueles, tais como as Testemunhas Cristãs de Jeová, que consideram todos os transplantes entre humanos como canibalismo..."
            Mais adiante, na p. 30, o autor acrescenta:
"...as Testemunhas de Jeová se opõem em sã consciência a todos os transplantes como sendo mutilação desnecessária de seus corpos criados por Jeová, e puro canibalismo."
          Tais palavras são difíceis de comentar. Além de constituírem um autêntico e inexplicável delírio fundamentalista - típico do obscurantismo medieval - revelam injustificável preconceito. Os artigos  lançam mão de uma analogia absurda, afinal, que paralelo razoável pode haver entre a prática hedionda do canibalismo, em que um ser humano devora a carne de outro,  e um ato de solidariedade humana, em que alguém doa, de modo altruísta, parte de seu corpo para salvar a vida de outrem, de modo que ambos - doador e receptor - continuem vivendo? Ademais, o que dizer da classificação de um procedimento cirúrgico salvador de vidas como sendo uma "mutilação desnecessária"?
           Nada menos que 13 anos se passariam antes que a Sociedade Torre de Vigia, finalmente, revisse seu grave equívoco, na edição de 1 de Setembro de 1980 de A Sentinela, pág. 31:
        "Deve a congregação tomar ação quando um cristão batizado aceita o transplante dum órgão humano, tal como a córnea ou um rim? No que se refere ao transplante de tecido ou osso humano para outro, é um caso de decisão conscienciosa de cada uma das Testemunhas de Jeová...É um assunto para decisão pessoal."
             Pergunte-se o leitor: o que aconteceu às Testemunhas de Jeová - ou a seus filhos pequenos - quando, neste lapso de tempo (1967 - 1980), uma cirurgia de transplante foi indicada como única alternativa para salvar uma vida?  Caso o adepto decidisse seguir à risca as instruções de sua 'mãe espiritual',  o que aconteceria? Sabe-se de, pelo menos, um caso - nos Estados Unidos. Trata-se de uma Testemunha de Jeová  de 68 anos de idade,  Arvid Moody, o qual, por volta de Junho de 1978,  faleceu - de acordo com depoimento de seus familiares - após recusar um transplante de rim. Quer esta morte tenha se devido diretamente ao ato dele quer não, a quem caberia responsabilizar por esta desnecessária exposição da vida ao perigo? O que teria motivado esta atitude insana? Assemelha-se isso a homicídio? As respostas não parecem difíceis...

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